Por Martha Medeiros.
Que personagem adotar para que a sociedade preste atenção em nós?
Nascemos carentes: precisamos de quem nos alimente e nos proteja, e dá-lhe biquinho, choro, mamãe eu quero. Com sorte, receberemos amor e comida em troca, e aí será a hora de entrar para a escola: como ser benquisto em território desconhecido?
Nossa adequação ajudará a fazer amigos, nossas estranhezas resultarão em bullying. Figurino, maquiagem e texto poderão facilitar nossa entrada na vida que sonhamos ser. “Seja você mesmo” é um conselho que só serve para aqueles que já sabem quem são, mas até aqui, estamos falando de quem ainda está tentando descobrir quem é – e como se fazer notar.
Arthur Fleck já está bem grandinho e ainda não sabe qual é a sua turma. Tenta fazer seu trabalho direito, mas é desprezado e humilhado. Os distúrbios mentais que traz da infância não ajudam nada. É um desajustado e tudo indica que continuará fantasiando que é popular e atraente, enquanto só apanha da vida. Até que entra em colapso: descobre que foi enganado pela única pessoa que o amava. Fim de linha. Só lhe resta virar o jogo da forma mais trágica que há.
Um bandido comovente? Muito prazer. Mais um ser humano que precisa de amor e atenção, como todos. Quem não tem uma coisa nem outra, busca alternativas patéticas e até mesmo radicais para consegui-las (inevitável pensar nas redes sociais, onde cada um pode abrir sua janelinha e dizer: “olha eu aqui!” A Internet é o picadeiro de todos nós, inclusive de malucos ávidos por se transformarem em super-heróis, mesmo que às avessas).
Coringa é um arrebatador filme de ficção sobre um personagem que todos conhecem, o arqui-inimigo de Batman. Só que o maniqueísmo recorrente dos quadrinhos deu lugar a uma inquietante indagação: de que lado, afinal, eu estou? Inevitável torcer por Arthur Fleck (interpretado pelo magistral Joaquim Phoenix), um pobre diabo que alguém muito “bonzinho” resolveu presentear com uma arma, a fim de que ele pudesse se proteger por conta própria, e o resto da história não é difícil de imaginar, Gotham City é aqui.
O mundo não é dividido entre bons X maus, e sim entre visíveis X invisíveis, acolhidos X desacolhidos, escutados X ignorados. “Seja você mesmo” é uma falácia para muitos, pois dificilmente saberemos quem somos se não tivermos uma certidão oficial de nascimento e o registro de um afeto e de um cuidado verdadeiro nos primeiros anos de vida. Sem isso, caímos no mundo com uma bola vermelha no nariz, sendo ridículos para chamar a atenção, até que a nossa dor atinja em cheio o coração alheio: comova-se ou morra. Não é um conto de fadas, mas o filme, de forma meio cínica, termina com o lendário e romântico The End em letras cursivas – como se a busca pela nossa identidade terminasse um dia.
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