Por: Juliana Santin.
Outro dia, abri meu Facebook e dei de cara com uma foto de um fantasma de um Natal passado, devidamente acompanhado. A foto me gerou certa estranheza, mas não me incomodou. Na hora, me veio à cabeça a Velha Roupa Colorida do Belchior. Coloquei a música e fiquei ouvindo repetidamente – berrando, na verdade, a plenos pulmões, diante de olhares arregalados dos felinos da casa.
Há aqueles livros clássicos, que podem ser lidos a qualquer momento e continuam atuais. E há músicas que são assim também, como essa. Fiquei pensando como é grande a nossa dificuldade em lidar com a tal da impermanência das coisas, ou, falando claramente, sobre como as coisas se transformam a cada segundo, sobre como a vida é fluxo, como dizia o filósofo Heráclito.
“No presente a mente, o corpo é diferente, e o passado é uma roupa que não nos serve mais”, diz a canção. Acho que essa frase tem que ser fixada na porta da geladeira. Eu acrescento na frase mais um item: o mundo. No presente, a mente, o corpo e o mundo são diferentes e o passado não nos serve mais.
É relativamente fácil para nós visualizarmos esse passado como sendo a velha roupa colorida que não nos serve mais quando se trata de algo realmente antigo, como itens da moda que não se usa mais, fotos de muitos anos atrás ou quando falamos algumas expressões “do arco da velha” – que meu filho me olha com olhos que dizem: “há quantos séculos você nasceu, mesmo?”
No entanto, podemos afinar um pouco mais esse pensamento, aumentar um pouco seu foco e tentar enxergar o fluxo. “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”, disse Heráclito. Então, a transformação ocorre segundo a segundo, na gente e no mundo. A pessoa que escreve aqui não é a mesma que começou a escrever esse texto, nem tampouco a mesma desse momento em que você lê o texto.
Gosto de pensar naqueles vídeos com sequências de fotos tiradas diariamente, por muito tempo seguido, em que vemos em poucos segundos transformações que levaram meses ou anos para ocorrer. Como o vídeo do americano Noah Kalina, que se fotografou diariamente por 12 anos e fez um vídeo mostrando a passagem do tempo em poucos minutos. É assim que acontece, o tempo todo, só que de forma mais lenta.
“Você não sente, nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer”, disse Belchior. Você não sente, não vê, mas está mudando, se transformando, segundo a segundo. Mas, apesar disso, insistimos em nos prender em conceitos, em crenças, em autoimagens, em traumas do passado. Tentamos colocar um alfinete fixando pontos, na tentativa desesperada de tentar parar o fluxo da vida, de ter onde se agarrar.
Fixamos verdades para nos sentirmos seguros. Mas o fato é que essa é uma falsa segurança, é mais uma tentativa de tentarmos lidar com as incertezas e angústias da vida; tentativa bastante capenga, aliás. Sempre imagino um cenário de videogame andando sozinho e o personagem se agarrando em algum ponto, mas não adianta, porque o cenário vem e destrói sua segurança, destrói sua verdade.
Nietzsche dizia que temos o que ele chamava de “vontade de verdade” como mais uma tentativa de negar a vida. A vida é fluxo, incerteza, altos, baixos, dores, alegrias, quedas, machucados, lágrimas e risos. Não podemos por um alfinete e fixar um ponto que desejamos, apenas para nos sentirmos seguros e aliviados. A tão buscada verdade seria para Nietzsche mais uma muleta metafísica. Buscamos de forma doentia conceitos como “isso é assim”, porque não conseguimos lidar com o “isso está assim” – mas pode (e provavelmente, vai) mudar.
Claro que nos vem à cabeça – assim como também pensou Belchior – o famoso poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, que fala sobre o homem que sofria uma dor terrível pela morte de sua amada e recebe a visita de uma ave preta, um corvo, que diante do fato inexorável, a morte, repete o tempo todo: nunca mais, nunca mais, nunca mais…
O poema de Poe é triste e coloca a ave como representação da inexorabilidade da morte, mas, como sabiamente interpretou Belchior, essa morte não precisa necessariamente ser a morte física.
Na música, o pássaro negro responde: “o passado nunca mais”. Nunca mais, Nevermore, como no original de Poe. Nunca mais criança, nunca mais jovem, nunca mais virgem, nunca mais não sendo mãe, nunca mais meu pai falando comigo, nunca mais meus 18 anos, nunca mais meus 30 anos, nunca mais a imagem que vi no espelho hoje cedo. Nunca mais.
Os ‘nunca mais’ se acumulam, se empilham. E às vezes eles se empilham tanto e ficam tão monstruosamente grandes que nos oprimem, nos sufocam, fazem uma sombra que nos confunde. Muitas vezes vemos a sombra do passado refletida em nosso futuro e acreditamos nela. Por isso, temos que nos lembrar: nunca mais. Deixar ir. Dar espaço para o novo, gostar dele, sorrir para ele. O passado, bom ou ruim, querendo a gente ou não, sentindo insegurança ou não, desejando fixar um alfinete nele ou não, nunca mais, nunca mais….
Quando você sentir que está tendendo a vestir novamente aquela velha roupa colorida, insistindo em achar que ela ainda lhe serve, lembre-se do corvo que, como no poema de Poe, “não sai mais, nunca, nunca mais!” mas, como disse um outro músico brasileiro, “as coisas se transformam, isso não é bom nem mau“. Assim, quando você estiver vivendo momentos muito alegres ou chegar a conclusões confortáveis e fáceis de digerir, o corvo poderá parecer desagradável ao lhe lembrar que nunca mais, mas quando estiver passando por momentos de dor e desagrado, em que o mundo esfrega na sua cara todas as injustiças e desigualdades, o corvo lhe trará alívio ao repetir nunca mais, nunca mais….
E para terminar, como em outra vezes, Mário Quintana vem em meu socorro:
“Nós vivemos a temer o futuro, mas é o passado que nos atropela e mata.
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